segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Pais e Filhos: Nature or Nurture?

"A educação exige os maiores cuidados, porque influi sobre toda a vida.”
Séneca

O tema pais e filhos sempre suscitou em mim muita reflexão.
Talvez seja por não ter, realmente, vivido uma relação autêntica ou plena, da perspectiva de filha.
Sim, porque há pais que procuram respostas nos filhos, em vez de lhes proporcionarem eles a orientação que a qualquer progenitor incumbe.
É bem verdade que os genes têm muito a dizer, no que respeita ao feitio de cada indivíduo. Mas parece-me interessante entrar neste tão famoso debate de “Nature or Nurture?”
O que será mais determinante na formação da personalidade dos nossos filhos? A constituição genética com que nasceram ou a forma como os seus encarregados de educação os programam?
Acredito profundamente nas duas coisas. No entanto, embora não sendo especialista na matéria, nem tendo estudado o assunto com a devida profundidade, parece-me que a predisposição genética será determinante, apenas, para problemas físicos e doenças genéticas, bem como para problemas de dependência. Com isto quero dizer que, de acordo com a minha limitada experiência, um toxicodependente descenderá de uma linhagem com essa predisposição: terá um pai ou uma mãe, por exemplo, com esse mesmo problema. Coisa que poucas pessoas parecem entender, preferindo apontar o dedo aos pais dos toxicodependentes. Aqui intervém a Natureza.
Já a questão da programação – Nurture – que os nossos pais nos dão, é outra.
Desde que nascemos, até ao dia em que saímos de casa deles, para o nosso próprio espaço, que recebemos os seus inputs. E aquilo que somos baseia-se na qualidade daquilo que eles nos deram.
O que mais me aflige, nos pais, é a incapacidade de tantos deles para proporcionar bases seguras à sua progenitura, tendo o cuidado de separar o trigo do joio da sua própria programação.
Mais do que tudo, parece-me fundamental que qualquer pessoa que deseje ter filhos faça uma análise exaustiva da sua pessoa, para perceber até que ponto está preparada para educar uma criança, sem repetir nela os erros de programação dos seus próprios pais.
É certo que somos todos diferentes. É certo que todos funcionamos de forma diversa. É certo que ninguém nos dá um manual de instruções quando temos os nossos filhos.
Contudo, parece-me que os potenciais pais deveriam, efectivamente, procurar ajuda e apoio, antes de conceberem os filhos, por um lado, para identificarem os seus próprios sonhos e as suas próprias frustrações e, por outro, para determinarem as suas aptidões no que respeita a não os projectarem nos filhos.
Sim, porque não é apenas um cliché dizer que as crianças são o nosso futuro – as crianças de hoje são mesmo os adultos de amanhã.
Seremos nós assim tão egoístas que não nos importemos com o resultado daquilo que fazemos aos nossos filhos, por pensarmos que eles só nos devem gratidão por os termos posto neste mundo?
Digo que há pais e mães que não deviam ter filhos. Ou mais do que um filho.
Deve haver pouca coisa pior para a auto-estima de uma criança – e futuro adulto – do que passar a sua infância preterida em relação a um irmão. Ou passar a sua infância afastada de um ou ambos os pais.
Conheço uma pessoa já sexagenária, amarga e desagradável, ressabiada e irascível, que passa a vida a infernizar todos os que estão à sua volta, apenas porque a mãe a abandonou quando ela era bebé. É assim que eu compreendo a sua forma de ser. Se ela não tem a capacidade de se dar conta disso e de dar a volta por cima, já é outra história.
Agora, meus caros, que é muito difícil contrariar a programação que recebemos, é.
Disso não tenho a menor dúvida.
Se a nossa programação consistiu em ceder sempre o nosso lugar aos outros, seremos certamente pessoas por demais influenciáveis e introvertidas na nossa vida adulta.
Se, pelo contrário, a nossa programação foi ser o centro das atenções, o mais provável é tornarmo-nos adultos egoístas e auto-centrados.
É nesta questão da programação que culpo os pais.
Posso estar a ser dura, mas é assim que vejo as coisas.
Os pais devem, na minha opinião, mostrar a cada um dos filhos que o amor que sentem por eles é absolutamente incondicional. Não podemos cair no absurdo de considerar que um pai deve tratar todos os filhos da mesma maneira, pois cada um é como é, e cada um deve ser abordado de acordo com a sua forma de ser. Mas a demonstração de amor incondicional pelos filhos tem de ser uniforme. Não pode apresentar quaisquer variações.
No fundo, isso acaba por ser o mais importante, se pensarmos bem. Todos os nossos complexos, que carregamos como um fardo pesado às costas, pela vida fora, derivam da percepção que temos do amor que os nossos pais nutrem por nós.
Na idade adulta, cabe-nos a nós identificar cada componente daquilo que nos faz vergar as costas, para nos descartarmos do peso a mais, por mais difícil que seja.
Mas o melhor seria mesmo que as pessoas pensassem muito bem nas suas capacidades parentais, antes de trazerem ao mundo os nossos futuros cidadãos.
Esta conversa tem muito que se lhe diga. Certamente que voltarei a abordar este tema.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O Prazer no Desprazer: Tentativas Poéticas Falhadas

Tributo aos Bons e aos Maus



Caros amigos que aguçais os caninos, para no-los cravar sem perdão, sedentos do sangue vermelho que nos corre nas veias, mais quentes que as vossas.
Queridos companheiros, que nos deixastes sem dó, tão ansiosos que estáveis por mostrar uns aos outros que éreis vós quem tinha razão.
Eis a vossa oportunidade de nos observar e comentar sobre aquilo de que jamais nos imagináveis capazes, sendo à vossa medida que vós nos julgais.
E assim fareis vós, sussurrando uns aos outros as censuras que haveis ensaiado e as quais evocais, por, na verdade, ser mesmo disso que dependem as vossas vidinhas .
Se pudésseis, faríeis certamente o mesmo, mas a coragem não está ao vosso alcance que estais aí tão em baixo, nesse funesto estado de medo, inveja e cobardia.
Amarrais-vos, pois, a essa intriga tão vil, e deleitai-vos com ela, pois, estimados comparsas, esse grande privilégio vos concedo eu com muito prazer.

A inquietude da imutabilidade



Encaro a incapacidade de reorientação como uma grave falha de carácter.

Tal como as águas paradas provocam em mim um irritante nervoso miudinho.

Quando o fundo não se vê, nem se deixa ver, mas impede a travessia do rio, com as suas pesadas areias movediças.

Detesto a pestilência que emana o atoleiro da conformidade cega e insistente das ilusões.

O oposto é o horizonte da mudança. A irregularidade, a sua paisagem.

É pela instabilidade que se chega à segurança, resvalando pela encosta íngreme do sofrimento, até às firmes terras novas do inesperado.

O que significa a variação?

Alterar um estado de coisas. Transformar o igual em diferente. Transmutar o semelhante para o dissemelhante.

Odeio a rotina monótona do que permanece na mesma.

Enfastia-me a roda lenta e emperrada das coisas velhas e bolorentas. E sempre a ranger.

Os dentes da engrenagem vital pedem regular lubrificação, para que os mecanismos que nos fazem avançar funcionem sem falhas – sem se atrofiarem ou, até, partirem.

Vivo pela mutação. Adoro a migração das ideias, dos hábitos e das teimas, para novos domínios. Que revigorantes são essas viagens para outras partes, em que embarcamos de cabeça erguida e cortamos os mares, saboreando o toque fresco da brisa no rosto.

Adoro o vai e vem dinâmico dessas forças invisíveis que nos movem.

E inquieta-me a imutabilidade das coisas.

Michelle MVH

O Rumo das Cores Vivas


Saí de casa bem cedo, como era meu costume, a passo rápido para não perder o autocarro. Equipada com os meus auscultadores, deixava para trás os sons mais banais da vida como ela é e mergulhava na melodia cadenciada da vida sob a minha perspectiva. O engenho estreito e delicado, que tão bem se encaixava no bolso interior do meu casaco, protegia-me eficazmente de eventuais contactos do meu interior abstracto com o exterior concreto. Entre os dois pólos da minha existência, observava a vida a decorrer ao ritmo que lhe impunha eu.

A paragem era logo ali, ao dobrar da esquina.

Como todos os dias, descia pela calçada, primeiro por baixo das arcadas, passando diante da capela mortuária e da igreja que se escondiam dentro e debaixo da estrutura cinzenta do prédio adjacente ao meu, como duas grutas escuras e frias para um nada, e da cervejaria comprida e cansada, onde as gentes que se repetiam no meu bairro bebiam a bica matinal, imersas nas suas vidas interiores. Depois, atravessava a estrada, em viés.

Uns metros mais à frente, aguardava a paragem, viva de pessoas, branca e cor-de-laranja, fria e esguia. Enferrujada, com o seu pequeno painel desgastado informando-nos trocista, acerca dos horários das carreiras que por ali passavam.

Esperava o “58 Príncipe Real”. Já sabia que, se viesse demasiado cheio, poderia sempre optar pelo “46 Rossio” (esse era o percurso mais curto, pois o mais comprido já não cabe na minha memória). Nesse caso, sairia nos Restauradores e seguiria caminho pela íngreme, mas revitalizante, Rua da Glória. Revitalizante com o seu elevador amarelo e velho. Velho por pertencer à excitante baixa da minha infância e amarelo porque assim eram os eléctricos da Lisboa das cores vivas.

E lá vinha ele, semi-atulhado. Se não tivesse nenhum passageiro esmagado contra o pára-brisas, entraria.

Entrei.

Demoraria entre 30 a 45 minutos a chegar ao outro lado da cidade, dependendo da boa vontade dos automobilistas e transeuntes lisboetas, naquela manhã. Dependendo do grau de clemência do clima. E dependendo da colorida lotaria dos semáforos.

Era assim que entendia. Que pré-visualizava aquele dia específico da minha vida até ali. E poderia ser um dia verde ou vermelho. Pelo menos, assim preferia, porque os dias amarelos eram por demais estranhos. Esquisitos. E, acima de tudo, indefinidos.

Era em Sete Rios que se iniciava tudo. Era aquele primeiro semáforo, da fronteira entre o meu mundo cartografado e o mundo que ia desbravando, lá fora. O mundo das coisas por descobrir. Das promessas de vida. O mundo das decisões tomadas.

Assim que o autocarro arrancava da paragem de Sete Rios, rumo ao novo dia, voltava-me para o semáforo, ansiosa por saber de que cor se vestiriam as horas seguintes da minha existência. Verde. Vermelho. Ou Amarelo…

Bastou um solavanco para perceber. O clarão amarelado passou por mim a correr. O condutor precipitara-se e transpusera a fronteira.

O semáforo de Sete Rios dera a sua sentença: o dia seria decisivo e passaria hesitante, da indefinição para a resolução. Da insegurança para a firmeza. E da incerteza para a determinação.

No Príncipe Real os humores eram sempre outros. Era no virar da rua D. Pedro V, para a rua da Rosa que a Lisboa bipolar saía do estado depressivo e entrava na fase esfusiante.

Era assim que eu entendia a cidade.

E aquele era o meu dia amarelo.

A Rua da Rosa cheirava-me sempre a pó e a comida.

Mas o ar era mais respirável e fresco. Era o meu próprio ar. E, ali, olhava para as coisas com a minha própria vista. No meu Bairro Alto, as vizinhas da velha Lisboa popular vinham à janela tagarelar com o extravagante vizinho de trejeitos femininos que se mudara recentemente para lá, e enchiam de verdade a minha manhã.

Sim, porque sem gente, aquelas janelas não eram janelas. E, fechadas, aquelas portas não eram portas. Inanimados, os prédios não passariam de muros que me impediam de chegar ao mundo lá fora.

Na escola de dança o ar cheirava a café torrado. Era um aroma palpável, voluptuoso e aveludado que pairava no ar e que entrava por mim dentro em agradáveis espirais de sensações.

Sentada lá fora, naquele pequeno espaço esquecido, por detrás do ginásio, consolava-me com o calor do sol, sentada sobre o cimento a contemplar com muita inveja o rapaz da escola de teatro, todo vestido de branco, que escrevia no seu caderno, sentado, lá em cima, no telhado do Conservatório Nacional.

Curvando-se à luz amarelada do semáforo de Sete Rios, o dia decorria aos solavancos. Naquele dia, adiantar ou parar faria muita diferença.

E foi precisamente nesse dia que estanquei.

Ainda hoje sinto o cheiro a café, dentro de mim, o cimento duro e áspero do meu poiso preferido, a roçar a minha pele, e o suave toque do sol no meu rosto.

Ao regressar a casa, ao fim da tarde, levei comigo todas as sensações que descobrira naquele rico e vasto universo que se estendia para lá do meu semáforo de Sete Rios.

A partir daquele dia o semáforo de Sete Rios estaria sempre vermelho.

Vermelho para mim.

Naquela direcção.

Importante passava a ser o semáforo seguinte, mais à frente e com outra orientação que, todos os dias, me indicaria a tonalidade de que se revestiria aquele troço do meu caminho.

Isso, até ao fatídico dia em que, tal como no de Sete Rios, o amarelo surgisse e desse lugar ao implacável vermelho, forçando-me a mudar de rumo, ou ao flexível verde, permitindo-me avançar um pouco mais, na mesma direcção.



Michelle MVH

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A Família: Lar Desfeito vs. Lar Intacto


“A família é um conjunto de pessoas que se defendem em bloco e se atacam em particular”.
Condessa Viane

O que é uma família? E para que serve?
Nos tempos que correm, devemos nós ainda encarar a família como um núcleo a preservar? Será a manutenção-a-todo-o-custo da família algo assim tão fulcral para o bom funcionamento da sociedade? E poderemos nós considerar que os bons valores, princípios e costumes só poderão ser transmitidos às crianças no seio da família dita intacta?
Creio que deveríamos todos parar um pouco para repensar o conceito de família unida. Se, há tempos, a preservação da família era garantia da multiplicação da espécie humana, hoje em dia, manter uma família "intacta" é um atentado à sanidade mental do indivíduo.
Vries diz: “Quando já não suporto pensar nas vítimas dos lares desfeitos, começo a pensar nas vítimas dos lares intactos.”
Faço minhas as suas palavras.
O que é, afinal de contas, um lar desfeito? E um lar intacto?
Olho à minha volta e encontro inúmeros exemplos das duas modalidades.
Tenho algumas dúvidas. Ajude-me o leitor a entender os dois conceitos.
O lar desfeito é aquele em que os pais se divorciam, porque não se entendem e procuram viver melhor?
O lar intacto é aquele em que os pais se mantêm juntos, pelos filhos, numa vida conjugal infeliz?
Quem fica mais traumatizado para a vida: o filho de pais que se divorciam em busca de relações mais plenas e de uma vida mais calma e pacífica, ou o filho de pais que se mantêm juntos alegadamente por ele, mas que passam o tempo a desrespeitarem-se, a gritarem um com o outro, a culpabilizarem-se por todas as desgraças e, até, a espancarem-se e a traírem-se?
Mil vezes o lar desfeito.
Conheço vários lares intactos e confesso que os considero grandes farsas.
Há casais que se detestam nitidamente. Em que a casa é um verdadeiro campo de batalha. Para quem a vida em família constitui um constante desafio. Insultam-se, batem-se e etc. Tudo pelos filhos.
Valerá a pena viver assim? É esse o melhor exemplo a passar à progenitura?
Será normal encarar as reuniões familiares como batalhas campais a que as pessoas comparecem só porque “há” a obrigação de estar com a família?
Será normal as famílias (des)funcionarem assim em prol da união?
Qual união? A de corpos?
Teremos nós de viver sob a tirania do sangue?
Será positivo para as crianças verem os adultos à batatada na ceia de Natal e nas festas de aniversário, a beberem uns copitos a mais para se aturarem, uns aos outros, e comerem a correr para se poderem pirar dali o mais depressa possível?
Será essa a opção mais saudável para os nossos filhos?
Despertem.
Precisam-se de corações.
Precisam-se de almas.
Precisa-se de harmonia, amor, inteligência, paz, serenidade e tolerância.
Um lar desfeito é o quê, exactamente?
Aquele em que os progenitores chegam à conclusão de que já não se amam e de que não aguentam viver juntos, optando por procurar, cada um, um parceiro que amem?
Não se traduzirá o lar (dis)funcional desfeito em dois lares funcionais?
Não será preferível que as crianças cresçam convictas de que o mais importante a preservar não é a família-conceito-físico, mas sim a família como poiso seguro, fonte inesgotável de carinho, devoção e amor incondicional?
“O interior das famílias é muitas vezes perturbado por desconfianças, ciúmes e antipatias, e enganam-nos as aparências de satisfação, calma e cordialidade, fazendo-nos supor uma paz que não existe; poucas há que ganham em ser aprofundadas.” La Bruyére
Concordo. É o que mais se vê.
Deveremos nós defender a coesão familiar, mas, ao mesmo tempo, alimentarmos inimizades, raivas e ódios com os do nosso sangue?
Como já disse noutro texto sobre a família, os nossos primos, tios, irmãos e pais são quem mais tende a criticar-nos e a atacar-nos. São eles que mantêm vivos em nós os nossos defeitos, que não nos perdoam pelas nossas decisões mal-tomadas, que não acreditam no nosso potencial de mudança e que mais nos ridicularizam. Assim é, na maioria dos casos.
E há aquelas famílias que se dividem em clãs rivais.
Os bons e os maus. Preto no Branco. Pão-pão, queijo-queijo.
“Uns sapatos que ficam bem numa pessoa são pequenos para uma outra; não existe uma receita para a vida que sirva para todos” Jung
Retirem das paredes de casa as fotos da família feitas em estúdio e substituam-nas por fotos instantâneas do dia-a-dia.
Acabem com os bordados e os pratinhos pintados a ostentar lemas católicos de promoção da família, só para nos iludir.
Não passam de lembretes. De wishfull thinking.
Há que abrir os olhos. Não podemos continuar a seguir modelos que não funcionam.
Vejamos as famílias disfuncionais, onde se pratica o incesto, a violência doméstica e os crimes passionais? Essas também devem ser mantidas a todo o custo? Para quê? Pelos filhos? Por causa da religião?
Alguém de entre nós preferia ver os pais casados, independentemente de estes se maltratarem diariamente?
Julgará alguma mulher que mais vale deixar o marido abusar da filha, do que deixá-la crescer sem ter o pai em casa?
Deixem-se de hipocrisias e cinismos.
Sejamos sinceros e verdadeiros.
Acabemos com esta intoxicação absurda de valores sem sentido.
Toleremos o próximo, mas não sacrifiquemos a nossa felicidade por uma causa perdida. Os nossos filhos agradecerão se os educarmos para serem pessoas sensatas e sensíveis, em vez de verdadeiros blocos de gelo andantes, orientados para as carreiras, e incapazes de estabelecer relações íntimas com as outras pessoas.
Deixem lá de arreliar os homossexuais.
Por que razão não haverão eles de se casar? E por que não hão eles de adoptar crianças? Seremos nós tão idiotas ao ponto de acharmos que um casal homossexual tem menos aptidão para educar uma criança do que o casal heterossexual, mesmo que este se drogue ou se espanque diante dos filhos?
O conceito de família não pode ser tão estanque.
Amar e deixar-se amar, respeitar e tolerar, amparar e apoiar – construir um espaço físico, psicológico e emocional pleno de harmonia.
Isso é que deve ser a vida em família.

domingo, 24 de janeiro de 2010

Quem tem Medo da Amizade?

"Feliz aquele que encontra um amigo digno desse nome."
Menandro

Há uns tempos, escrevi aqui um pouco acerca da forma como entendo a família.
Hoje quero falar dos amigos.
Afinal, o que são os amigos?
Alguém sabe explicar?
Ralph Waldo Emerson dizia que o amigo(sera a verdadeira obra-prima da natureza. E eu concordo. Concordo, até porque as obras-primas não andam para aí ao pontapé. Tal como os amigos.
Teremos nós todos a sorte de poder afirmar, com toda a certeza, que temos amigos?
E teremos nós todos a capacidade de ser amigos?
Responderia às duas perguntas negativamente.
Na minha adolescência li a série completa de Anne of Green Gables, de Lucy Maud Montgomery, conhecida no nosso país como Ana dos Cabelos Ruivos, no formato de desenho animado.
Adorei a personagem principal por me identificar com ela em muitas coisas, entre as quais, a sua noção de "bosom friend" - amiga/o do peito. E foi o que tentei encontrar, durante anos, sem sucesso.
Serão os amigos do peito, não apenas, obras primas da natureza, mas também, e sobretudo, obras de ficção?
Ou será a dificuldade em encontrar amigos e em manter amizades um produto da nossa época?
É bem visível que o homem tem vindo a voltar-se, cada vez mais, para o seu próprio umbigo. Se, no Renascimento, o homem passou a ser o centro do universo, no século do progresso ou, como diz o historiador, Niall Ferguson, o século da guerra do mundo, o umbigo de cada um passou a ser o centro do universo. E depois do umbigo não sei muito bem onde irá parar o nosso universo... para as entranhas?
A vida urbana, bem como o bombardeamento dos meios de comunicação social, que promovem o desenvolvimento da identidade individual de cada um, por oposição à identidade colectiva, tornou-nos insensíveis ao próximo.
A experiência também.
Em bom rigor, devo dizer que, olhando para os tempos da minha meninice, e comparando-me à minha filha, constato que tudo mudou.
Mas a amizade, como a paixão, não deveria ser um daqueles conceitos imutáveis e imortais? Pelo menos foi disso que sempre ouvi falar. Terão os nossos antepassados andado a espalhar mentiras? Não será o ser humano incapaz de forjar amizades com os seus pares?
Às vezes é o que parece.
Os amigos do peito, tanto quanto sei, são como as famílias perfeitas: não existem.
Existem, sim, os amigos circunstanciais. Mas aqueles que largam tudo para vir em nosso auxílio, que estão sempre do nosso lado, que nos aceitam tal como somos e que não competem connosco - esses - ou são uma raça extinta, ou não passam de um mito, criado há centenas de anos por algum pai ou alguma mãe, para consolar os filhos. Ou por um qualquer filósofo ou pensador, num momento de puro delírio.
Gostaria de colocar aqui essa pergunta.
Alguém se sente capaz de afirmar que tem um (ou mais) amigo(s) verdadeiro(s)?
Só poderão responder a essa pergunta as pessoas cujos amigos se mantiveram a seu lado durante todos os altos e baixos das suas vidas. Que ninguém que jamais tenha passado por uma fase má da sua vida declare ter amigos a sério, porque é quando temos problemas que podemos separar o trigo do joio. E raro é o caso em que ficamos com alguma coisa.
As amizades verdadeiras não podem ser disfuncionais, como as família, ou não merecem o título de amizade, mas de dependência mútua.
As famílias disfuncionais permanecem famílias porque se criou o mito de que o sangue fala mais alto e porque a vasta maioria das pessoas tem horror a ficar sozinha no mundo - que é o que acontece se largamos a família.
As amizades não têm esse elemento vinculativo que é o ADN.
Ou temos um Karma fantástico e encontramos esses tais amigos do peito, em quem podemos confiar sempre, faça chuva ou faça sol, ou somos meros mortais que, obcecados com o seu umbigo, não confiam em ninguém, nem deixam ninguém aproximar-se deles.
Andem um pouco pelas ruas.
Inúmeras são as vezes que vejo pessoas a chorar, sozinhas. Estendidas no chão. Loucos delirantes, daqueles que esbracejam e gritam.
Raras são as ocasiões em que vejo alguém parar para ajudar o próximo.
Eu própria não o faço. Por medo. Mas sinto grande vontade de o fazer.
Será que tudo se resume a isso? A um medo oculto, dentro de cada um de nós, de sermos maltratados, quando tentamos ajudar?
Digo que nem sempre será o caso.
Este Verão dei uma queda aparatosa na praia e fiquei alguns segundos estendida no chão, com o susto e com a violência da queda. Mas o que mais me chocou foi constatar que as dezenas de pessoas à minha volta me estavam a observar, com expressões de gozo, e que nenhuma delas teve o impulso de vir ter comigo para me ajudar a levantar e perguntar se me sentia bem.
E há exemplos muito mais graves.
Será esta uma prova de que a humanidade está, de facto, a perder a capacidade de sentir empatia ou compaixão pelo próximo? Será que andamos tão assustados com todo o caos em que o mundo está que não nos atrevemos a criar laços seja com quem for?
Sim, porque ouvimos histórias incríveis.
Sim, porque só vemos coisas tenebrosas a acontecer à nossa volta.
Estaremos nós tão atarefados com o desenvolvimento do nosso ego que nem nos apercebemos de que a vida pressupõe interacção com o próximo - o tal conceito de "Amai o Próximo"? Quem sem interagirmos com o próximo não vivemos a vida?
"Nenhum homem é uma ilha", diz John Donne.
Concordo, mas se fosse traçar um mapa das minhas interacções sociais, obteria um planeta constituído unicamente por ilhas. Não só sem continentes, mas com aglomerados de ilhas separadas, umas das outras, e separados por mares intransponíveis.
O que não falta por esse mundo fora são movimentos de solidariedade e de promoção da amizade, mas se os observarmos à lupa, vemos que todos são formados por indivíduos estanques, que não se encaixam uns com os outros para formar um todo.
Aliás, às vezes sinto-me transparente. Ando pelas ruas e as pessoas à minha volta não se desviam da sua rota para não colidirem comigo. É sempre em frente. Pisam-nos, acotovelam-nos, empurram-nos e seguem em frente, como se não estivéssemos ali.
Sinto-me só, nesses momentos.
Perco a fé na Humanidade com Letra Maiúscula.
Perco a expectativa de que, um dia, tudo possa mudar e que as pessoas darão as mãos, umas às outras, não com o intuito da lhas morderem, mas com o intuito de as ampararem.
Apercebo-me de que a única hipótese que nos resta é mudarmo-nos nós, a nós próprios e adaptarmo-nos a esta nova - ou não - realidade: a realidade das amizades assépticas, incaracterísicas, impessoais, oportunistas, ocasionais e por demais fugazes. As amizades de mesa de café, temperadas a cigarros e bicas, entre tremoços e imperiais. Acabado o jogo, acabada a universidade, acabados os dias vãos da juventude, cada um vai para o seu cantinho, cada um vai à sua vida, os anos passam e as pessoas esquecem-se... porque o homem é, e sempre foi, um ser solitário, profundamente egoísta e oportunista, que só se interessa pelo seu próprio bem-estar e não vê muito mais para além do seu nariz.



sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

A Família







“Do modo como a concebemos, a vida em família não é mais natural para nós do que uma gaiola é para um papagaio.”

Bernard Shaw





Neste novo ano de 2010, para abrir o apetite de debate de temas quentes, decidi reflectir um pouco sobre a família.

Lembro-me do ano da Família, que já não sei qual foi. Os devotos católicos compravam pratos com a Sagrada Família, para pendurar, orgulhosos, nas paredes das salas de estar, em posição de destaque, com contornos dourados a deslumbrar o visitante.

Entramos em qualquer lar tradicional e vemos pilhas e pilhas de fotografias de familiares. Por vezes, são tantas, que não resta um centímetro de parede sem uma moldura pendurada, ou um palmo de superfície horizontal sem um porta-retrato. Álbuns são aos magotes, juntamente com CD, DVD, slides (mais antiquado, admito), a preencher as prateleiras da casa. Agora também há cartazes, bolsas, T-shirts, canecas – tudo a ostentar os rostos felizes de membros da família.

Sempre que me confronto com exemplos de perfeita felicidade doméstica como estes, até sinto calafrios. Lembro-me imediatamente de reportagens sobre miúdos que massacraram colegas e professores em liceus, pais que mataram a família inteira à machadada, mães que afogaram os filhos, casais que se esfaquearam, balearam e agrediram à martelada. Isto porque, em geral, ao relatarem os antecedentes dos intervenientes em tais crimes, os repórteres apresentam-nos as fotografias do “Antes” que são fotografias dessas, com as pessoas em questão, rodeadas pela família, todos compostos, e ofuscando-nos com os seus sorrisos rasgados, os cabelos impecavelmente penteados e a roupa imaculada. Ou fotos instantâneas de pessoas em posições mais espontâneas e descontraídas, mas todas demonstrando-se em sintonia com os parentes que acabaram por chacinar.

Serão as fotografias uma imagem fidedigna da realidade, tal como ela é? Ou serão elas a cristalização de momentos orquestrados e concebidos para apresentar aquilo que não temos, mas com que todos sonhamos?

Estamos rodeados de publicidade, filmes, literatura e tudo o mais, promovendo a imagem da família como uma unidade harmoniosa. Mas quantas corresponderão realmente a esse conceito?

Creio que muitas das pessoas que enchem a casa de fotografias da família até ao ponto do enjoo, o fazem para se convencerem de que é isso que têm: amor dos familiares – a paz, a tranquilidade, o carinho, o afecto, a compreensão e o apoio que sempre ouvimos dizer serem intrínsecos à vida em família.

Constatamos, porém, que a maioria das famílias é disfuncional. Pelo menos, nesta sociedade. Há quem diga que isso se deve à perda de valores essenciais dos tempos modernos e ao facto de as mães passarem a assumir um papel activo na sociedade, deixando a educação dos filhos nas mãos de outrem. Pode muito bem ser isso, mas não podemos ser tão hipócritas a ponto de negar que, no passado, tenham existido famílias disfuncionais. Temos parricídios, fratricídios e todo o tipo de –ídios entre familiares, desde tempos imemoriais.

Será a vida em família viável?

Julgo que a maioria das pessoas desconhece uma verdade, no que respeita à regra do “Amai o próximo” – o facto de esse conceito ser precedido pelo conceito “Detestai o mais próximo” e sucedido pelo conceito “Idolatrai o menos próximo”.

Olhemos para a nossa sociedade – olhemos para todas as sociedades – e centremo-nos numa generalidade.

Quem são os primeiros a censurar-nos, a julgar-nos e a punir-nos quando cometemos um erro?

Para com quem demonstramos nós mais consideração?

Quem mais merece a nossa veneração?

No âmbito extremamente limitado da minha experiência, os membros da nossa família são quem mais se acotovela para estar na linha da frente do nosso pelotão de fuzilamento. Na hora da verdade, são geralmente os membros da nossa família que mais tendem a julgar as nossas acções, a não acreditar na possibilidade de mudarmos e a censurar cada uma das nossas escolhas. Estes são os nossos mais próximos. E normalmente são as pessoas mais próximas que mais capacidade têm para nos odiar ou desprezar, para nos manipular ou atraiçoar.

No dia-a-dia, tendemos a ser compassivos para com quem sofre, mas raramente nos damos conta que nos compadecemos mais do vizinho do que dos nossos próprios familiares. Inclinamo-nos a dar mais apoio moral aos nossos amigos do que aos nossos irmãos, por exemplo. Prontificamo-nos a ajudar mais os nossos primos, do que os nossos irmãos. Não digo que seja sempre assim, mas é muito frequente.

E quem idolatramos nós? De quem são, tantas vezes, as fotografias em maior destaque na nossa sala de estar e de quem tendemos nós a falar melhor? Dos vivos ou dos mortos? Pois é: dos menos próximos. Os nossos falecidos entes queridos e as nossas celebridades favoritas merecem as nossas melhores palavras e a nossa maior admiração.

É assim. Somos assim mesmo.

Acredito na família. Acredito nos laços familiares. Como também acredito na superioridade das afinidades sobre o sangue. Acredito no afecto. Acredito ser possível manter viva a chama da paixão num casamento. Como também acredito ser sempre possível mudar – mesmo que os outros nunca se disponham a aceitar essa mudança. Para tudo na vida é preciso empenho, esforço e dedicação. Não podemos querer tudo, sem nada fazer por isso. O bom ambiente familiar não é um dado adquirido. É preciso construí-lo, de preferência, sobre sólidas bases. Exige manutenção constante, anexos, alterações, remodelações, limpezas… e reconstrução, após um tornado inesperado.

No entanto, no meu entender, para funcionar como uma unidade harmoniosa, a família deve despir-se – lá está – de preconceitos, juízos de valor, regras pré-estabelecidas, ditames religiosos e imposições da sociedade. Da mesma maneira que não existem duas pessoas exactamente iguais – acredito que todos somos, efectivamente, Especiais e Únicos – não existem duas famílias perfeitamente idênticas. É nesse sentido que me parece ser uma enormidade tentar aplicar as mesmas regras e impor os mesmos valores a agregados com formas distintas de funcionamento. O que é bom para um, é prejudicial para outro.

O que é certo é que cada família tem de encontrar a fórmula mais acertada para encontrar a sua própria paz e harmonia. Esqueçam a regra de se darem todos bem, a todo o custo. As pessoas podem ser da mesma família, mas terem personalidades totalmente divergentes. Nesse caso – digo eu – há que pensar no que diz Gandhi, para que a convivência seja possível sem azedar os ânimos: tolerar não significa aceitar. A tolerância é tudo. Seja em que contexto for. A tolerância pela forma de ser do próximo, pelas suas motivações e pela sua maneira de estar na vida permite-nos coabitar com um certo equilíbrio.

Para concluir, opino que, para estarmos bem uns com os outros devemos ser, acima de tudo, tolerantes. Não devemos partir do princípio que todos pensam ou funcionam como nós, nem que a isso são obrigados. Como também não devemos julgar os nossos mais próximos, por nos considerarmos os maiores especialistas na matéria da sua personalidade. A maioria das pessoas não possui a capacidade para ler pensamentos ou a extrasensorialidade para sentir o mesmo que o seu próximo. Muito menos temos o dom de nos transformarmos literalmente em moscas para podermos observar o que se passa na intimidade de cada um. Então, por que estamos sempre tão convictos de sabermos bem o que se passa com os nossos familiares mais próximos e que somos quem melhor os pode julgar, precisamente por pertencermos ao mesmo clã?

Importante regra: a nossa liberdade acaba quando começa a do próximo. A família partilha o espaço físico que, por vezes, é demasiado reduzido, mas isso não implica necessariamente que se devam ultrapassar as fronteiras mais imperceptíveis da área pessoal de cada um. É esse o segredo para se estabelecer e manter a paz e a harmonia no seio familiar. Isto, claro está, na minha opinião de mero peão neste planeta.